Violência contra mulher é da minha, é da sua, é da nossa conta

Neste Mês da Mulher, o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Contas (CNPGC) publica, semanalmente, artigos assinados pelas Procuradoras-Gerais de Contas do MPC brasileiro e pelas mulheres que já ocuparam a Presidência do Conselho. Hoje, 22 de março, foi ao ar o artigo assinado pela Procuradora-Geral de Contas de Santa Catarina e atual presidente do CNPGC, Cibelly Farias.

 

A violência contra as mulheres – definida como qualquer ato de violência que resulte ou possa resultar ano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico – constitui-se em uma das principais formas de violação dos seus direitos humanos, atingindo-as no seu direito à vida, à saúde e à integridade física. Apesar de todos os avanços registrados no campo da garantia dos direitos humanos e da igualdade de gênero, o Brasil ainda está muito distante da concretização plena desses direitos, remanescendo uma abjeta cultura de violência contra a mulher, notadamente no ambiente doméstico. O falecido médico, psicanalista e escritor Hélio Pellegrino, em artigo publicado na Folha de São Paulo em 1982, e parcialmente reproduzido no livro “Brasil: Nunca Mais”, ao abordar os efeitos desumanizadores da tortura, relata, com dolorosa precisão, a violência doméstica contra mulher e suas consequências nefastas – violência esta que nada mais é do que tortura rotineira. Com um agravante: o torturador, neste caso, é aquele com quem se divide a cama, a casa, a vida, cotidianamente.

Homens e mulheres são atingidos pela violência de maneira diferenciada. Enquanto os homens tendem a serem vítimas de uma violência predominantemente praticada no espaço público, a violência contra as mulheres cotidianamente ocorre dentro de seus próprios lares, na grande parte das vezes praticada por companheiros e familiares. Por tal razão, aliada ao medo de retaliação; falta de meios alternativos de apoio econômico; preocupação com os filhos; falta de apoio da família e de amigos; estigma ou medo de perder a custódia de filhos no divórcio; e a esperança de que o parceiro mude seu comportamento, as estatísticas que informam acerca da violência contra as mulheres nem sempre dão conta de retratar fielmente a dimensão desse complexo problema.

Em 2019, o Ministério Público de Contas de Santa Catarina apresentou uma representação ao Tribunal de Contas, apresentando dados fornecidos pela Secretaria de Segurança Pública acerca da violência contra a mulher catarinense entre os anos de 2017 a 2018, os quais apontavam para números alarmantes, especialmente se comparados aos nacionais.

No ano de 2017, com relação aos feminicídios, no Brasil foram 1,1 crimes para cada 100 mil mulheres, enquanto em Santa Catarina a taxa foi de 1,4 – maior, portanto, que a média nacional. A taxa de lesão corporal registrada nacionalmente foi de 106,5 lesões para cada 100 mil habitantes, enquanto no Estado a taxa era de 225,9 – ou seja, mais do que o dobro do índice nacional.

É importante registrar que outra auditoria realizada pelo TCE/SC (Processo @RLA 18/01156694) constatou que os crimes de feminicídio que ocorreram em Santa Catarina entre 2011 e agosto de 2018 acarretaram em uma perda de R$ 424,3 milhões ao Estado. Evidentemente que os danos de ordem pessoal e emocional decorrentes desse tipo de prática são imensuráveis, porém, o estudo realizado demonstra que crimes dessa natureza, além de absolutamente repugnantes, trazem também um efetivo prejuízo financeiro ao Estado e, consequentemente à toda a sociedade. Em um cenário de muitas demandas e poucos recursos, são valores que poderiam ser empregados em políticas públicas deficitárias ou mesmo na prevenção desse tipo de violência.

Nesse cenário, o objetivo principal da representação oferecida pelo MPC era impulsionar uma auditoria operacional – e que foi posteriormente realizada pelo Tribunal de Contas – para identificar inicialmente todas as estruturas estatais de apoio existentes no nosso Estado: delegacias especializadas, abrigos, programas de enfrentamento. Quem são? Quantos são? Como se distribuem em todo o Estado? São suficientes para enfrentar a demanda? Por outro lado, também se fazia necessário avaliar, em termos financeiros e orçamentários, se os investimentos do Estado na política pública de enfrentamento à violência contra a mulher seriam suficientes e, ainda, se os valores são corretamente empregados em termos de eficiência de resultados. Ademais, um levantamento de competências entre os diversos órgãos públicos envolvidos poderia identificar os pontos fortes das instituições, suas fragilidades e apontar caminhos para que sua atuação pudesse melhorar.

Em 2021 o TCE concluiu essa detalhada auditoria, na qual pudemos constatar que, após mais de 15 anos da Lei Maria da Penha, Santa Catarina ainda tem muito o que fazer. Em 2019, os números já eram alarmantes, com mais de 60 mil notificações na Secretaria de Segurança. No ano passado, com o resultado da auditoria, percebemos que a situação no nosso Estado havia piorado. Além do aumento em 51,7% nos registros nos últimos 5 anos, os achados evidenciaram que não havia articulação e interlocução entre os órgãos que compõem a rede de atendimento, que não temos alguns instrumentos previstos em lei para esse atendimento, que carecemos de pessoal qualificado para o atendimento às vítimas (somente 31 delegacias especializadas em todos o Estado, que atendem também crianças, adolescentes e idosos, e apenas 5 delegacias com equipe especializada em investigação de violência grave contra a mulher), bem como locais adequados para receber essas mulheres (apenas 12 Casas Abrigo em todo o Estado, com capacidade para atender 236 mulheres). Com relação à prevenção, mais precariedade. Não temos programas de prevenção bem estruturados no Estado e são mínimos os programas voltados à reabilitação dos agressores.

Diante desse quadro, em janeiro deste ano, o Tribunal de Contas de Santa Catarina proferiu decisão no referido processo de auditoria e, como resultado das propostas da área técnica e do MPC, foram listadas 59 recomendações e determinações a diversos órgãos públicos envolvidos nas políticas de enfrentamento à violência contra a mulher e foi dado um prazo de 90 dias, a contar de 21 de janeiro de 2022, para que os dirigentes desses órgãos apresentem um plano de ação estabelecendo prazos, responsáveis e atividades para a adoção de providências visando o atendimento da decisão, que importará na melhoria do atendimento às mulheres vítimas de violência no nosso Estado.

É importante registrar que o nosso Estado possui importantes inciativas nesse tema, registro aqui os projetos da Polícia Militar e da Polícia Civil de Santa Catarina, tais como a “Rede Catarina de Proteção à Mulher” e o “Polícia Civil por Elas”, o projeto ÁGORA – Grupo Reflexivo de Homens Autores de Violência”, uma das muitas ações da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar – CEVID do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ou ainda o trabalho do Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (GEVIM), no âmbito do Ministério Público de Santa Catarina. Durante o processo de auditoria foi implementado oficialmente o Observatório da Violência contra a Mulher em Santa Catarina (https://ovm.alesc.sc.gov.br/), que congrega diversas instituições do nosso Estado, com objetivo principal de fornecer dados para a construção de indicadores que permitirão a elaboração, o monitoramento e a avaliação das políticas e ações de prevenção e de enfrentamento à violência contra as mulheres em SC, com vistas a alcançar a equidade de gênero.

Diante da complexidade e da relevância do tema, que envolve ações transversais nas diversas esferas de competência pública, como saúde, segurança pública, assistência social, entre outras, a auditoria solicitada pelo MPC/SC e realizada pelo TCE/SC se propôs a obter um retrato fiel sobre a prestação de tais serviços, em termos quantitativos e qualitativos, e com isso converteu-se em instrumento hábil a guiar a tomada de decisões quanto às prioridades a serem executadas nas ações voltadas ao enfrentamento da violência contra as mulheres catarinenses, e assim auxiliar na adequada alocação de recursos por parte de gestores públicos. E a partir da formação de uma rede que unifique todas as instituições públicas em torno do combate desse problema teremos ações mais eficazes e menos onerosas para a redução desses índices de violência no nosso Estado.

É grande o desafio e a responsabilidade de aportar uma efetiva contribuição para o combate desse complexo e gravíssimo problema, o que reafirma também o papel social dessas instituições de controle e as integra nessa luta humanitária que não só é da minha, da sua, da nossa, mas é da conta de toda a sociedade.

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